30 outubro 2013

A cena manguebeat e a influência de Chico Science para a música brasileira


A área onde a cidade de Recife foi fundada, em 1537, é cortada por seis rios. Pela sua costa ser cercada por esses cursos de águas ela ficou conhecida como “cidade estuário”. No século XVII, após a expulsão dos holandeses, a cidade passou a crescer desordenadamente e a ter seus rios e mangues aterrados. Logo os mangues, que são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Isso significa aterrar áreas enormes de desova em um ecossistema de grande diversidade de seres vivos por centímetro cúbico. Por esse problema gerado, por volta de cem anos depois de sua fundação era evidente os malefícios que traria às condições de sobrevivência na capital de Pernambuco.

Dando um salto no tempo e chegando ao começo dos anos 1990, as previsões que se tinha lá no distante passado foram comprovadas. O agravamento da miséria e do desemprego foi elevado em ritmo acelerado. Mais da metade dos habitantes da cidade moram em favelas e alagados. E segundo estudos de um instituto de questões populacionais de Washington, a cidade, nessa época, foi considerada a quarta pior do mundo para se viver.

No meio de todo esse caos urbano surge um grupo de músicos com ideias inovadoras para transmitir a situação dessa região para todo o país. Então, no ano de 1991 o movimento “manguebeat” aparece no cenário musical de forma impressionante. A palavra contracultura pode ser interpretada como uma postura, ou até uma posição, em face da cultura convencional, de crítica radical. Nos anos 1960, esse conceito se encaixou perfeitamente no movimento tropicalista e depois de trinta anos um abalo musical tão significante quanto esse nasce para fazer a diferença, mostrando a realidade do Nordeste do Brasil.

As bandas Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre S/A são os maiores expoentes e precursores do movimento. Chico Science juntamente com Fred Zero Quatro, vocalista da Mundo Livre S/A, o jornalista Renato Lins e outros companheiros escrevem o que se torna o manifesto do movimento. Intitulado de “Caranguejos com cérebro”, o texto é divulgado em 1993 no encarte do primeiro disco de Chico Science e Nação Zumbi – Da lama ao caos. Dividido em três partes: mangue – o conceito, manguetown – a cidade, e mangue - a cena; o texto explica cada um dos tópicos e mostra a necessidade de expandir os pensamentos e mensagens dos mangueboys.

Chico Science e os Mangueboys

O movimento teve uma influência fundamental, o livro “Homens Caranguejos”, do sociólogo pernambucano Josué de Castro mostra uma comparação do ciclo de vida do homem miserável ao caranguejo, por este se alimentar por dejetos orgânicos do mangue. "Vamos criar um satélite de ideias, fincar uma parabólica no mangue e mostrar a cara do Brasil”, expressão dita pelos fundadores do movimento que evidencia o porque e para que vieram.

Capitaneada por Francisco de Assis França – o Chico Science-, a Nação Zumbi tornou-se a porta-voz do movimento, com suas letras e musicalidade totalmente inovadora, a banda ganhou o reconhecimento dos meios de comunicação de massa e consagrou definitivamente Chico Science no meio artístico cultural.

Estava criada então, propositalmente, uma nova cena musical com a intenção de ser ecoada por todo o país e, quem sabe, até no resto do mundo. A necessidade da atualização estética e tecnológica fez com que os “mangueboys” se sentissem cidadãos do mundo. Antes o que era considerado apenas cultura popular do povo da região, agora era expandida, reconhecida e valorizada. Adotou-se um visual mangue, chapéu de palha, camisas coloridas e óculos escuros. Nascia uma identidade coletiva.

Com uma mistura imensa de ritmos musicais, maracatu regional com ritmos da música pop mundial, passando pela pegada funk, batuques africanos, xaxado, flertes com o forró sertanejo e todos sendo acompanhados com guitarras distorcidas; o estilo da banda era inclassificável, tamanha a criatividade e a variedades de sons.

As pontes, os seis rios que cortam a cidade, os viadutos, o lixo, os urubus e a miséria; são elementos sempre presentes nas letras de Chico Science e Fred Zero Quatro. Acrescentados a esses elementos, temas como: a crítica social, a diferença de classes, a criminalidade e o banditismo estão presentes nos seis singles da banda no período com Chico Science no vocal; “Da lama ao caos”, “ A cidade”, “A praieira”, “Samba makossa”, “Manguetown” e “Maracatu atômico”. Esta última, sem dúvida, tornou-se o maior hit da banda. O primeiro álbum, que proporcionou a todos os amantes da música o primeiro contato com o mundo do movimento mangue, começa da melhor forma possível com a faixa “Monólogo ao pé do ouvido”, em que Chico Science, com a sua voz grossa e com seu sotaque nordestino diz:


Modernizar o passado é uma evolução musical

Cadê as notas que estavam aqui
Não preciso delas! Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos
O medo dá origem ao mal
O homem coletivo sente a necessidade de lutar
O orgulho, a arrogância, a glória
Enche a imaginação de domínio
São demônios, os que destroem o poder bravio da humanidade
Viva Zapata! Viva Sandino! Viva Zumbi!
Antônio Conselheiro!
Todos os panteras negras
Lampião, sua imagem e semelhança
Eu tenho certeza, eles também cantaram um dia.
(Monólogo ao pé do ouvido – Chico Science. Da lama ao caos,1993)


Portanto, já na abertura do disco se percebe o impacto do monólogo. Deixa bem claro o intuito do movimento, de fazer critica social, da luta, do protesto através da música do “manguebeat”. Citando os líderes revolucionários, Chico Science demonstra o seu e dos demais seguidores do movimento o sentimento de divulgar e mudar a realidade do seu povo.

Depois de três anos de contrato com a Sony Music, dois álbuns elogiados pela crítica, de conquistar o seu reconhecimento e seu espaço no meio musical, de três turnês mundiais a banda fazia sucesso. Até dia 2 de fevereiro de 1997, quando tragicamente Chico Science, aos 30 anos, perde a vida em um acidente de carro entre os municípios de Recife e Olinda. Perdia-se então um grande pensador, letrista e cantor da música brasileira; precursor do movimento “manguebeat”, que agora perdia suas forças depois da morte do seu líder.

“Chico Science, seria considerado pela crítica mundial o principal divisor de águas do pop internacional desde o aparecimento de Bob Marley, na década de 70”. Gilson Oliveira – Jornalista

“É essa autenticidade, essa busca sistemática da verdade do indivíduo e do mundo em que ele habita, uma de suas maiores contribuições, servindo de lição para muitos artistas que formam a atual cena musical pernambucana. Aconteceu com o Mangue, sem Chico, o mesmo que aconteceu com o reggae, sem Bob Marley. Uma grande semente foi plantada e bons frutos continuarão sendo colhidos por muito tempo”. Silvério Pessoa - Cantor e Compositor

“Ele foi um fenômeno cultural que, em tão pouco tempo, conseguiu modificar profundamente a maneira de o pernambucano ver a si mesmo, fortalecendo praticamente todos os setores da cultura local”. Pedro Mendes – Organizador do Rock na Praça

“Foi o movimento mais importante desde o tropicalismo. Não creio que ninguém tenha sucessor, mas o Chico tem seguidores, já que é difícil não se deixar influenciar pela música dele”. Pedro Luís – Músico

A importância de Chico Science na cultura e na música brasileira é incontestável. Principal representante de um movimento totalmente brasileiro e original. Conseguiu expressar, através da música, suas inquietações perante a situação do nordeste do país: a desigualdade social e a miséria geradora da criminalidade. Realidades que reinam na região. Apesar da sua passagem ter sido curta e sua obra não tão vasta assim, ela é de uma riqueza chocante que o colocou no hall dos mais expressivos artistas brasileiros.

Depois do baque da morte de Chico Science, a Nação Zumbi não se entregou e continuou sua carreira. Com o percussionista Jorge Du Peixe agora nos vocais, junto com o guitarrista Lúcio Maia, o baixista Alexandre Dengue, o baterista Pupillo e os percussionistas, Toca Ogan, Gilmar Bola Oito, Gustavo Da Lua e Marcos Matia; a banda continua fazendo sucesso, lançando discos, DVDs e fazendo turnês pelo exterior. A verdade é que se perdeu aquele brilho da presença de Chico Science, mas a banda continua com a mesma sonoridade. Ainda é reverenciada como era uma década atrás, e para muitos continua sendo a melhor banda do país.

Chico Science foi cedo, mas ainda hoje se pode ver a influencia do “malungo” em muitas bandas nacionais. O Rappa, Pedro Luís e a Parede, Cordel do Fogo Encantado, Mombojó, são algumas. Ele deixou marcas até na Escócia, onde surgiu um maracatu punk, o Bloco Vomit.

Lá no começo dos anos 1990, um baixinho magrinho de óculos escuros ajudou no nascimento de uma cena musical diferente de tudo que existia, misturando ritmos, sacudindo-os e colocando de cabeça para baixo a música, tornado-se, por tudo isso, o nome da década. Bem como diz uma das frases famosas dele: “Eu me organizando posso desorganizar”, realmente desorganizou e deixou muita gente espantada e perguntando o que era aquele rock misturado com batuque de tambores.









Mais um verdadeiro artista dá adeus


Lou Reed morreu. Infelizmente. Aos 71 anos um dos mais geniais músicos e poetas do século XX se despediu tranquilo e consciente, no último domingo em sua casa em Long Island , Nova York. A causa foi por complicações de um transplante de fígado feito em maio.

Guitarrista, letrista e compositor, Lou Reed nasceu no Brooklyn e quando grande tornou-se um exímio observador. Longe da cena pacífica e colorida de paz e amor dos hippies, Reed era mais realista. Sua alma de legítimo artista caminhava ao contrário da beleza. Pelas ruas cinzentas de Nova York foi imbuído pelas mazelas da sociedade americana.  E nessa perspectiva caótica de miséria, violência, drogas e prostituição fundou o The Velvet Underground na metade da década de 1960 com o baixista John Cale, o guitarrista Sterling Morrison a baterista  Maureen Tucker, para retratar e dar voz aos marginalizados.

Com uma proposta extremamente experimental, mesclando poesia, melodia e ruído tornaram-se uma banda de vanguarda. Inovadora e eternamente influente para o rock mundial. O Velvet foi uma referencia de rebeldia criativa e estilística. Sem eles é difícil imaginar o surgimento de correntes como o Glam, o Punk, o Gótico, o Industrial e o Pós-Punk. Tudo isso Lou Reed pode ser considerado progenitor. Além da noção de independência, que o Underground do nome da banda já sugeria, de não ter a pretensão de ser puramente comercial e de agir ao pegar os instrumentos e fazer sua música autoral. Se a cena independente existe em todo canto do mundo, certamente tem um pouco de Lou Reed e do Velvet Underground ali.

O artista pop Andy Warhol foi um dos poucos que pressentiu que eles poderiam ser grandes e contribuiu para a importância do grupo ao assinar uma das artes mais icônicas de um álbum de rock, a simples banana, e trazer a cantora alemã Nico e seus vocais fortes e graves para a banda.  Registro de estreia de 1967, que é coberta de clássicos, como: “Sunday Morning” (sobre a ressaca mental de uma noite de excessos), "I'm Waiting for the Man" (o dependente à espera do traficante), “Venus In Furs” e “Heroin”. Uma obra capital perene do rock.


Depois vieram White Light/White Heat (1968), o homônimo The Velvet Underground (1969) e Loaded (1970). Todos estes com a maioria das letras e canções escritas por Lou Reed. Após a dissolução do grupo, em 1970, Reed continua sua missão sozinho: pintar o lado atroz das ruas através da poesia. Com Transformer (1972) e Berlin (1973) chega à tradução de sua sensibilidade. “Walk on the Wild Side” (apelo a uma existência abusiva e um tributo aos travestis e homossexuais) e “Perfect Day” (uma lira comovente) são seus épicos.

A música de Lou Reed, tanto nos Velvets como nos seus trabalhos solos, possuem uma sonoridade impecável e entusiasmante. E por conta disso e a despeito das suas muitas poesias duras, elas trazem uma sensação de esperança por trás.

Lou Reed seria o Bukowski do rock...? O fato é que ele foi uma espécie de porta-voz de uma geração descrente e confusa e seu discurso sempre será atual. E pessoas iluminadas e corajosas assim sempre farão muita falta.