“São Borja é uma cidade
missioneira e fronteiriça ao mesmo tempo, e o Chamamé representa a união entre o
Brasil e a Argentina.”
Assim Caio
Benevenuto enfatiza o papel que sua terra natal teve na sua paixão pela dança.
Luiz Carlos Benevenuto é professor de danças folclóricas gaúchas e em poucos
minutos de conversa ele já deixa transparecer sua paixão pelo Chamamé, estilo
de música e dança comum na província de Corrientes, na Argentina. Também
cultuada no Paraguai, e no Brasil; pelos gaúchos, pelos sul mato-grossenses e
paranaenses.
O Chamamé
teve procedência dos povos indígenas guaranis, de espanhóis e imigrantes
italianos. O encontro dessas culturas
deu origem ao gênero musical. Mas, Caio também tem outra paixão: sua parceira
de dança e esposa, Vânia. Eles se conheceram há 23 anos. E o destino já estava
traçado, pois foi numa pista de baile que se encontraram pela primeira vez. A
dança os aproximou e os mantêm juntos até hoje. “Desde esse nosso primeiro
encontro nós viemos dançando juntos. A dança faz parte da nossa história de
união”, afirma Caio.
Para o
casal, mais do que o prazer de dançar, eles têm nela um elemento essencial de
estímulo, a tal ponto que hoje, eles representam o Chamamé rio-grandense e a
cidade de São Borja em competições nacionais e internacionais de danças
tradicionalistas.
A paixão
pela dança surgiu quando Caio ainda era guri. “A dança me acompanha desde a
minha infância. Minha mãe gostava muito. Meu avô era cigano e ciganos gostam de
danças. Meu pai era um espanhol, então eu tenho uma procedência. Tá no sangue.”
Mas, esse amor teve um empurrãozinho, na verdade, pelo futebol. Afinal, não
fosse pelas três cirurgias no joelho, ele não ouviria a recomendação que mudaria
sua vida. “Um médico de Santa Maria me disse, há treze anos, que eu não tinha
mais capacidade de jogar futebol. Só que eu deveria fazer algum exercício. ‘Vai
dançar dança de salão’, ele me disse. ‘Esse vai ser um exercício muito bom pra
ti. Mas não o faz só nos finais de semana. Pratica a dança’. Então comecei a
exercitar em casa, com a minha mulher”. Essa prática tornou-se rotina, e como
diz o ditado ‘a prática leva a perfeição’, eles ficaram motivados em participar
de apresentações na cidade, mas foi num evento artístico, no Piquete Portal da
Querência, que a dupla recebeu o primeiro elogio: “Vocês têm algo na dança que os
diferencia na pista”, analisou um radialista. E de fato, para quem já teve
oportunidade de vê-los dançando concordariam com o comentarista. Percebe-se que
levam a dança mais do que apenas distração, mas também como realmente algo importante
e prazeroso. O elogio os incentivou, servindo como força para seguirem o
caminho dessa arte milenar: a materialização da música através dos passos e dos
movimentos.
Eles
escolheram se especializar no Chamamé. Para Caio o entusiasmo nasce não só do
ato de dançar, mas também do estudo do ritmo, do que ele representa, e,
principalmente, de como senti-lo. Para ele, tem que se conhecer a história do folclore,
do estilo e o que ele representou para seus criadores e representa para seus
praticantes. “O Chamamé nasceu na tribo Caiguá, dos índios Guaranis. E era um
ritual que se agradecia aos Deuses. Por isso que quando eu e a Vânia estamos
bailando costumamos agradecer aos Deuses do Chamamé por tudo àquilo que
recebemos. Quando estamos dançando um Chamamé ou qualquer outro ritmo gaúcho
sempre é com muito sentimento”.
O Chamamé
é uma cultura que predomina mais na região missioneira da Argentina.
Especificamente na província de Corrientes, que são vizinhos mais próximos do
Rio Grande do Sul, facilitando a influência na música gaúcha. Dessa forma, o
estilo artístico serve como um fator em potencial de integração entre o Brasil,
a Argentina e o Paraguai. Caio e Vânia, que convivem nesse meio relacional, por
meio das diversas participações de eventos nos países vizinhos, veem o Chamamé
como uma conexão entre esses povos. Um mesmo ideal pela arte. O mesmo
sentimento de pertencimento missioneiro. “Mais do que um ritual indígena, hoje,
o Chamamé é uma dança de salão, que aqui no Rio Grande do Sul vem crescendo
muito e vem unindo países. Porque a porteira do Mercosul, através da arte e da
cultura, está sempre aberta. Na parte cultural não há inimigos. Não há
adversários, e sim uma união. Nos sentimos irmanados. Todas as vezes que
participamos de festivais na Argentina somos recebidos como chamigos, irmãos correntinos que estão
ali praticando a dança deles. Eles se orgulham de ter um par são-borjense,
fronteiriço, como campeões chamameceros”, compartilha o dançarino.
Como
pesquisador da cultura musical gaúcha, Caio ensina que “nós temos a Vaneira, o Xote
e a Milonga, que é uma dança romântica. A Milonga para o gaúcho é como se fosse
um Tango, que o gaúcho namora sua dama. Se executa muito pouco a Milonga nos
bailes. Nós temos Mazurca, temos Terol, temos Polca, temos Contrapasso, Marcha,
e temos a Chamarra que é uma música missioneira. A Chamarra expressa às
missões, e não se executa em fandango. No fandango vocês vão escutar somente Vaneira
e Xote, difícil se tocar uma Milonga. A Valsa também é muito pouco executada,
sendo que ela é a primeira dança de par enlaçado. Até foi proibida antigamente,
era vista com indecência. A Valsa deveria ser executada porque é a mãe da dança
de salão. O repertório gaúcho é muito amplo e muito pouco divulgado e
executado. No fandango não se vê a diversidade que nós temos. Inclusive o ritmo
mais rio-grandense é o Bugio, que é pouco executado. O Bugio é uma dança que
nasceu aqui no Rio Grande do Sul e que deveria fazer parte de todo o fandango.
O Bugio, a Vaneira, o Xote, a Rancheira, as coisas do Rio Grande ficam restrito
aos Centro de Tradições Gaúchas (CTGs) que, com muita honra digo isto, são os que
cultivam as nossas tradições, porque senão elas seriam esquecidas, estariam em
segundo plano. As rádios deveriam executar muito mais nossos ritmos para que o
público ouvisse e também gostasse. Vamos colocar o Bugio nas rádios até o
pessoal pegar gosto!”, convoca entusiasmado.
Caio
também lembra que o termo sapucay,
tão falado pelos gaúchos, principalmente durante as apresentações, normalmente
não é conhecido pelas pessoas de outros Estados. Nem imaginam o que significa,
até escutarem. Caio descreve o real sentido da palavra: “Nós que estudamos a
cultura argentina e a cultura do Chamamé temos o sapucay como realmente o grito da alma. Se você me pedir pra soltar
um sapucay agora, eu não vou fazer
isso. Porque ele não se treina, o sapucay nasce do sentimento de ouvir um Chamamé,
no momento de emoção quando você está bailando. E bailar é viver aquele
momento. Você sente a necessidade para que aquilo venha espontaneamente. O sapucay é um sentimento a ser expresso
em agradecimento aos Deuses.”
A dança
tem levado a dupla a lugares distantes, tanto aqui no Rio Grande do Sul, como
em Santa Catarina, e principalmente, na Argentina. E nessas viagens costumam
trazer a tiracolo muitas conquistas inéditas, Em 2010 foram campeões do 46º
Festival do Folclore Correntino, na cidade de Santo Tomé. Ocasião em que
concorreram com 16 pares argentinos. Este prêmio os credenciou no mesmo ano a
participar do 21º Festival Mundial do Chamamé, na cidade de Corrientes. Na
oportunidade, dançaram no Teatro Transito Cocomarola, considerado pelos argentinos
o Templo do Chamamé. Desta vez trouxeram o título de sub-sede internacional de Chamamé
para São Borja e Santo Tomé. Com esse láureo, São Borja passa a ser a única
cidade fora da Argentina a ser uma sub-sede chamamecera. Em março de 2012 foram
até a cidade de Goya, na Argentina, distante 460 km de São Borja, concorrer no
22º Baila Chamamé, e novamente foram vitoriosos.
Premiação em Goya, Argentina
“Eu fico
aguardando o momento de ser convocado para um festival ou para ir fazer uma
apresentação artística na Argentina, em Santo Tomé, que é aqui na nossa divisa,
pela maneira de eles nos receberem, de nos respeitar e respeitar as coisas do
nosso Estado. A nossa arte, a dança e a indumentária são vistas. Eles se
encantam com tudo isso. Quando nós participamos dos festivais geralmente nem é
pronunciado o nome do bailarino, e sim a cidade: é Rio Grande do Sul, a cidade
de São Borja, Brasil. E isso nos orgulha muito. Representar o nosso país e essa
cidade que a gente ama tanto”, orgulha-se Caio.
Sempre
que a dupla se apresenta, seja competindo ou não, costumam levar como músicas
temas, canções de artistas de São Borja, e que cantem a cultura missioneira. Uma
forma de valorizar ainda mais a identidade e a arte criada na cidade. “Quando
saímos para dançar sempre procuramos levar músicas que falam das nossas coisas,
das missões: os Chamamés missioneiros, os Rasguidos Dobles missioneiros e as Valsas
missioneiras. Nós temos uma cultura musical bem diversificada na parte
missioneira. E eu sempre levo porque eu tenho essas músicas como um hino, elas
nos emocionam quando tocam. A gente se sente parte dela. E o bailarino precisa
ser motivado quando está no palco. E essas canções são fundamentais. Talvez
esses Deuses missioneiros são os que têm nos levado a ganhar esses títulos
internacionais.”
Mas,
como sempre, o sucesso tem suas adversidades. Caio diz que quando estão
dançando em um baile gaúcho sente muitas vezes olhos de desdém de algumas
pessoas: “Quando vamos num fandango, alguns não gostam do casal Caio e Vânia.
Eu até compreendo, porque nós dançamos na pista como dançamos numa competição, não
para aparecer, mas porque isso já é natural para nós. Às vezes comentam que
queremos ser diferentes. Mas, nós fazemos aquilo que o nosso corpo e a nossa
mente pedem. Não é porque queremos nos destacar em pista de baile. Nós queremos
nos sentir a vontade com os outros. Mas o diferencial é apenas que a gente exercita
mais e isso trás uma diferença na pista. A qual muitos admiram e muitos não
veem com bons olhos”, desabafa Caio.
O misto
de dedicação e talento da dupla são-borjense lhes rendeu a entrada no balé Cruz
de Papel, da cidade de Curuzú Cuatiá, na Argentina. O grupo é composto por 40
casais correntinos e um brasileiro e é visto como um dos mais representativos
da Argentina. Há treze anos se apresentam como o balé oficial no Festival
Mundial de Chamamé. A iniciação nesta companhia fez com que tivessem a necessidade
de uma carga mais rigorosa de ensaios, mais concentração nos passos, pois o
grupo trabalha com Chamamés coreografados e sincronizados; diferente das danças
dos bailes gaúchos. “A partir do momento que passamos a fazer parte desse balé,
daí sim, nós começamos a praticar a dança artística mesmo. O Chamamé começou a
fazer parte do nosso dia-a-dia em trabalhos específicos de coreografias.”
Cada vez mais aumenta para a dupla os compromissos
com a dança. As viagens para o país vizinho há tempos não são mais novidade. Já
se sentem meio argentinos meio brasileiros. Ao ponto de durante suas falas
misturarem as duas línguas. Quando se dão conta estão conversando em “portunhol”.
“Ficamos felizes em saber que São Borja é a 1ª sub-sede
de Chamamé, 1ª cidade a ter uma dupla campeã de Chamamé e é a 1ª cidade a
integrar o ballet mundial por dois
anos. E este é um trabalho nosso para São Borja. A dança para nós não é um
baile, é um culto a Deus, ao Deus da musica, ao Deus do ritmo. Quando estamos a
bailar nos sentimos em outra dimensão. Nós
nos dedicamos a esta arte, a essa cultura com tanto amor. Nós não vamos
competir por dinheiro, nós vamos competir principalmente por essa integração do
Mercosul e para que seja conhecida a nossa arte fora do nosso país”, finaliza o
casal.